História, Biografia e Ficção: Memória e Esquecimento por Lourenço do Rosário

Texto de Lourenço do Rosário, Reitor da Universidade Politécnica: “História, Biografia e Ficção: Memória e Esquecimento” ; Conferência Internacional Discursos Memorialistas e a Construção da História (África e Macau), Universidade de Macau, 25-27 de Outubro de 2016.

História, Biografia e Ficção: Memória e Esquecimento por Lourenço do Rosário

Ao longo do século XX, sobretudo nos últimos anos, desenvolveu-se a preocupação de se abordar a História, do ponto de vista de transformá-la a ela própria como objecto de estudo.

Alguns estudiosos colocam-na no plano da filosofia da história, outros preferem simplesmente designá-la de “História da História”.

A questão fundamental que se coloca é perceber como é que o Homem, tendo em vista a sua história e evolução, consegue apreendê-las desde os tempos que se perdem no tempo, com o surgimento do universo até ao momento em que passou a considerar-se dono desse mesmo universo. Além disso, o Homem angustia-se sobremaneira, procurando perceber como pode dominar o entendimento do que pode ser o depois do tempo. Percebe-se assim, que o tempo é a sua principal angústia porque é ele que lhe permite organizar o entendimento da sua evolução e do seu futuro, entre o Princípio e o Fim, sendo esse Fim o início de um salto para uma vida suprema. Todo o sacrifício vivido ou imaginado é sempre em busca de uma vida transcendente prometida, seja ela terrena ou celestial.

A Bíblia, no Génesis, começa assim “ No princípio, Deus criou o céu e a terra” e desenvolve toda uma narrativa que explica o surgimento do universo em que o seu espírito pairava sobre as águas; a terra estava vazia e deserta e as trevas cobriam o abismo. Prossegue a Bíblia, afirmando que Deus disse: “ Faça-se a luz”. Esta afirmação mostra o princípio da medição do tempo a partir dos fenómenos da natureza. Deus chamou à luz de dia e chamou de noite às trevas. A teoria do Big Bang, por sua vez, considera este fenómeno da Física como “explosão térmica do buraco negro”. Encontramos assim no Génesis semelhanças sobre o mesmo fenómeno no plano metafísico e as especulações eventualmente científicas da teoria do Big Bang vêm confirmar a necessidade de fixar na história do universo que a Física é a ciência fundacional do universo e do tempo, a Química é a ciência sequente, a Biologia o início da vida e dela decorre a História, que marca a revolução cognitiva.

Uma das grandes preocupações do homem quando reflecte sobre a sua própria história é tentar compreender “de onde veio, como veio e para onde vai”.

Voltando ainda à Bíblia, no Génesis, percorrendo facto a facto, a mesma fala da criação do firmamento, do aparecimento da vida vegetal e animal, e finalmente, fala do homem. Ela distingue perfeitamente, de uma forma sequencial, o aparecimento de todos os fenómenos químicos e biológicos e termina colocando o homem no topo da pirâmide, dizendo expressamente: “produza a terra seres vivos segundo as suas espécies” e “façamos o homem à nossa imagem e semelhança, para dominar sobre os peixes do mar, as aves do céu, os répteis e todos os animais e a terra”. E afirma, sobretudo, que Deus abençoou o homem e disse-lhe: “sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” e “entrego-vos para vosso alimento, os animais e as plantas e as frutas e as sementes produzidos pelas árvores”.

A narrativa bíblica, na civilização judaico cristã, vai influenciar profundamente a questão da narrativa do homem sobre si próprio, entrelaçando história mítica com a história das ciências básicas, quando efectivamente neste momento se encontra no topo da cadeia do domínio sobre a natureza e se obriga a reflectir como isso terá acontecido. Muitos outros mitos de criação e origem das mais diversas civilizações alinham os factos de forma similar.

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Há cerca de 70.000 anos atrás, o homem era um ser sem qualquer relevância na natureza e perante os outros animais. Abrigava-se nas cavernas, alimentava-se de recolecção e estava numa escala inferior na cadeia alimentar. A sua natureza gregária permitia-lhe defender-se com dificuldade dos grandes predadores e das agruras da natureza.

As teorias científicas aceitam com algum pudor a natureza símia do homem, porque isso remete-nos a uma necessária comparação com os outros símios que ainda persistem na natureza: gorilas, macacos, chimpanzés e outros, nossos primos. Os mitos, pura e simplesmente ignoram esse aspecto. Por isso, há de encontrar o homem uma linha narrativa de alguma heroicidade que marca a diferença do seu percurso, percurso esse que o distancia dos seus parentes próximos.

Em primeiro lugar, a revolução cognitiva faz com que ele tente distanciar-se do mundo em que se encontra para melhor compreendê-lo, permite-lhe relacionar-se com ele e dele retirar o melhor proveito possível, tentando se defender dos outros animais, dos fenómenos adversos da natureza e buscando alimento para sua sobrevivência. Mas a revolução cognitiva em si, tem muita semelhança com a forma como os outros animais também se relacionam com a natureza. Contudo, o homem ganhou vantagem a partir de uma capacidade que não evoluiu nos outros animais, que é o domínio de uma forma de linguagem única. Com o domínio desta forma de linguagem, o homem pode criar à sua volta um discurso que o ligue à natureza, isto é, como buscar alimentos, como defender-se dos predadores, como abrigar-se das intempéries, tal como os outros animais recrear-se, mas, sobretudo, como dominar as suas emoções quando tal seja necessário, ganhando um espírito negociador se não puder ganhar vantagem nas suas demandas e criar um universo verbal sobre essa realidade ou extrapolá-la no plano fictivo, real ou sobrenatural. É nesta linha que nós consideramos que as primeiras manifestações da relação história, tempo e espaço constituem os instrumentos fundamentais da socialização do homem, isto é, os instrumentos que foram construindo, o domínio do fogo, a criação de armas e instrumentos de produção permitiram que fosse domesticando territórios, animais e plantas e acima de tudo, deuses, para seu usufruto e conforto físico e anímico.

Há estudiosos que acreditam que a grande conquista do homem se baseia no facto de ele poder contar e sobretudo contar factos acontecidos ou não acontecidos e neles pôr crença. Os animais, de uma forma geral, também brincam e comunicam, mas não são capazes de ficcionar e acreditar na ficção, seja ela profana ou divina. As comadres contam e comentam casos da comunidade, tenham eles acontecido ou não e este entretenimento é fundamental para regular os comportamentos. As mães e as avós contam histórias de monstros se querem amedrontar os filhos e contam lenga-lengas se querem adormecê-los e criam rotinas educativas. Os caçadores contam factos inenarráveis sobre os seus feitos na caça e criam apetência aos jovens aspirantes a caçadores, os artesãos contam selectivamente, em forma de revelação, os segredos dos seus ofícios aos aprendizes. Temos exemplo, na historiografia portuguesa, em A peregrinação de Fernão Mendes Pinto, de como um facto histórico da expansão portuguesa, foi transformado numa grande e fantasiosa ficção. As religiões narram a origem dos deuses e o sobrenatural do homem. As ideologias prometem uma vida melhor para as comunidades. As novelas criam um mundo onírico, os jornais moldam a opinião pública e em todas estas situações o narrador, seja ele protagonista ou não, tem a necessidade de fazer da sua história, uma história relato, história testemunho em que está sempre subjacente a necessidade de comprovar o mexerico: eu vi, eu assisti, disseram-me, fulano me disse, eu li ou foi uma revelação, quando seja no plano sobrenatural, por exemplo, há uma aparição de um deus ou seu emissário que transmite mensagens que se transformam em História: Moisés, a Anunciação, os três pastorinhos de Fátima, Lurdes, etc.

É essa objectividade buscada que legitima a verdade da história e a verdade não precisa de ser nem verídica nem verossímil, é apenas verdade. A dimensão do fictivo é tão vasta que domina completamente a nossa percepção do real, mesmo quando este se tenha passado connosco próprios. Nós nunca seremos capazes de contar da mesma forma em tempo diferente um facto que se tenha passado connosco.

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Quando nos debruçamos sobre a saga da nossa historiografia libertária e fundacional relativa aos nossos países e aqui, em particular, me concentro no caso de Moçambique, vejo que passados 40 anos do fim da luta armada de libertação, alguns protagonistas dessa mesma saga começam a surgir com relatos desse período heróico das nossas origens como nação. O mais interessante é que se partirmos do princípio que o princípio da história baseia-se no mito de origem e o fim da história baseia-se no fim supremo feliz que buscamos, finda a caminhada, isto é, donde viemos, como viemos, para onde vamos é sempre para a salvação, verificaremos que em todas estas narrativas de memórias biográficas, este princípio se mantém: o nascimento do herói, o seu percurso iniciático, a passagem por provações, a heroicidade perante essas provações e o triunfo final da causa que defendeu. Trata-se de um esquema perfeito que o estruturalismo da narratologia estabelece e que se enquadra na narrativa estruturalmente ascendente:

1. situação inicial de carência-perturbação extrema
2. transformação heróica
3. resolução almejada
4. estado final eufórico esperado

No plano ideológico, as narrativas baseadas nas teorias marxistas, terão sido aquelas que maiores ilusões terão criado na mente das massas que abraçaram a causa da libertação, a criação de uma sociedade sem classes. Hoje, o neoliberalismo cria a ilusão do triunfo do indivíduo enquanto ser singular para uma vida de felicidade e conforto material plena.

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Marcelino dos Santos, um dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique e que ostenta actualmente o cartão número um, de membro fundador desta organização, que levou a efeito a Luta de Libertação Nacional do País, costuma reiteradamente afirmar “a Frelimo sou eu”.

Esta afirmação pode parecer pretensiosa, para quem, neste momento, no contexto de liberdades democráticas instituídas, ouve alguém elevar-se ao nível da História de toda uma organização que tendo ajudado embora a criar, teve um percurso multifacetado.

A Frelimo foi uma Frente que levou a efeito, no contexto dos movimentos de libertação nacional que na década de 60 do século passado enveredaram pela luta armada para perseguir os objectivos da libertação nacional, porque a potência colonial, no caso vertente Portugal, não reconhecia esse direito aos povos dos territórios por si dominados.

Se tomarmos esta afirmação como um paradigma do papel de um indivíduo no contexto de uma História colectiva, acabamos por ter que desembocar na problemática das biografias, da ficção e da memória. Todas estas áreas têm em comum o exprimirem-se por narrativas, histórias, utilizando factos em que se configuram os elementos fundamentais da teoria da narrativa: o tempo, a narração, o espaço, a acção e os protagonistas.

Assim, uma série de questões se colocam do ponto de vista epistemológico, para distinguir entre a realidade dos factos, a verdade dos mesmos e a sua ficcionalização.

O indivíduo como sujeito histórico, sempre procurou evidenciar o seu papel de protagonista singular acima do colectivo, quando tenta narrar os factos que informam o passado e o devir da sua vida, isto é, se é ele que conta, naturalmente reservar-se a um lugar de destaque podendo jogar com os espelhos de representação em que sempre reflectirá a sua própria imagem, a causa colectiva pode pura e simplesmente primar pelo caminho do esquecimento daquilo que eventualmente pode ofuscar o seu protagonismo.

A Frelimo com que se identifica Marcelino dos Santos, será sempre uma Frelimo heróica, que a partir dele próprio, Marcelino dos Santos, vai narrar a história dessa Frelimo em que entra como protagonista. Os feitos serão devidamente seleccionados face à oposição que se estabelece entre a memória e o esquecimento dos factos por si e pelo outrem protagonizados.

É assim que nos propomos reflectir sumariamente sobre como se apresentam as inúmeras autobiografias que a partir de um determinado momento, na História de Moçambique, têm sido produzidas por alguns dos mais destacados libertadores da pátria.

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Em Moçambique, nos últimos anos, foram publicadas várias autobiografias, podendo ser divididas entre autobiografias de cariz político e autobiografias de campanhas militares. Sendo que umas e outras são as duas faces da mesma luta de libertação. Os seus autores tentam fazer crer que foram histórias vividas, afastando ao máximo qualquer avaliação que aponte reservas.

Tomando como paradigmas dessas autobiografias, as Memórias de um guerrilheiro, de José Moiane e, Participei, por isso testemunho, de Sérgio Vieira, onde podemos provavelmente constatar que pelo facto de José Moiane, homem de poucas letras, estar a narrar os factos relacionados com a história da guerrilha em que ele participa como comandante e pelo facto de estarem apresentados estes factos num discurso despido de reflexão, análise e interpretação pode parecer-nos mais credível e mais próximo da realidade daquilo que se passou no campo da batalha e nós como leitores ficamos mais desarmados das nossas reservas.

José Moiane conta as batalhas em que participou, conta situações de traição e punição aos traidores, conta as dúvidas que a solidão provoca num guerrilheiro em determinados momentos da luta prolongada. O texto de José Moiane pode suscitar em nós uma adesão e empatia:

Atravessamos a fronteira, aí a caminhada foi longa, chegou um momento em que senti necessidades menores e parei para urinar, quando vou urinar, verifiquei que estava a urinar sangue, fiquei assutado, mas o meu comapanheiro tranquilizou-me e explicou-me que aquilo era pelo facto de fazer longas caminhadas enquanto não se está habituado.” (p. 33)

ou “Os camaradas se assustaram e de imediato começaram a posicionar-se. E o camarada Magaia retorquiu, dizendo-lhes: “Não, camaradas, é apenas a minha granada”. Mas ele estava confuso. De imediato rectificou, dizendo: “Camaradas, é o disparo da minha arma.” Mal acabou de proferir essas palavras e caiu no chão. “Os camaradas técnicos de medicina aproximaram-se rapidamente, fizeram os primeiros socorros. Nesse dia, dormiram pelo caminho e no dia seguinte, 10 de Outubro de 1966, quando já estavam para atravessar a fronteira para entrar no território tanzaniano, o camarada Filipe Samuel Magaia infelizmente não resitiu, perdeu a vida.” (p.77)

ou “Ao ouvir essas palavras, mantive-me calado, com medo de me meter em sarilhos”(p. 31)

ou ainda “Época muito dura e de muito sacrifício aquela, tanto para nós como para a população em geral daquela zona. A ofensiva Nó-Górdio foi muito dura, Khaúlza de Arriaga utilizava a “táctica de gibóia, minerva e crocodilo”, que consistia em usar os paraquedistas para mina, criar trilhos falsos e minados. Perdemos alguns camaradas, assim como população, vítimas de minas.” (p. 112)

ou “Os portugueses pegaram no vibrião de cólera e foram espalhá-lo nas nossas zonas, isto é, nos rios e poços onde os nossos guerrilheiros em Manica e Sofala bebiam a água. E nós como tínhamos ligação estreita com Manica e Sofala, não tardou o contágio. As pessoas tinham vómitos e diarreias agudas e em seguida morriam de desidratação. Eu tinha lido alguma coisa sobre epidemias de escorbuto, febre amarela, febre tifóide e a cólera, mas já não fazia nenhuma ideia sobre o que fazer em caso de ataque de cólera. Perdemos alguns soldados.” (p. 143)

Por seu turno, Sérgio Vieira, com um discurso mais elaborado, embora se apresente logo na introdução como alguém que teve um papel secundário numa espécie de atribuição menor no processo da luta armada, o seu discurso desmente-o totalmente quando ao longo de quase 800 páginas, desenvolve a luta no plano político e diplomático, no qual se atribui a si próprio um papel preponderante nas relações externas do movimento de libertação de Moçambique. Sérgio Vieira, para além de contar os factos, não perde a oportunidade de se imiscuir na narração, produzindo reflexões e análise sobre os mesmos, marcando profundamente o seu texto:

Pouco antes de fugir, na véspera dos meus 20 anos, vários de entre nós sacrificamos o pouco que possuíamos para assitir ao concerto do grande e único Satchmo no teatro Monumental. No dia seguinte, dia dos meus anos, em romaria, timidamente, procurámos visitar a estrela do jazz, no hotel em que se encontrava na zona do Marquês de Pombal. Recebeu-nos carinhosamente. Houve um momento em que as coisas correram mal, pois tentamos falar do colonialismo. Disse-nos para irmos para o inferno, mas entretanto, como alguém lhe informara que eu completava nesse dia os meus vinte anos, apaziguou-se. Louis Armstrong mandou vir uma garrafa de champanhe em minha honra”. (p.113)

Ou ainda “Saído de duas prisões, em Mtwara e Dar-es-Salaam, sem que qualquer razão justificasse as detenções, nunca a PIDE logrará prender-me, sentindo-me vítima do racismo e da conspiração contra linha da Frelimo e de Mondlane, afastado os meus camaradas, apenas com a roupa que usava no corpo, havendo perdido os meus poucos e únicos haveres que prezava, as notas que escrevera e os livros, via-me sem perspectivas, sem tarefas, sem razão de ser, porque não dizer, abandonado à sorte? Valeu-me “A Luta Continua” afirmada por Eduardo Mondlane no cemitério e o que me disse na conversa que se seguiu. Samora também me escreveu e, longamente, por várias vezes. Restabeleceu-se a confiança no futuro e com ela a paciência para persistir. Em Dezembro assassinavam mais um companheiro, Khankhomba e veio Fevereiro de 1969, que me apanhou no Cairo, depois de falar com Mondlane no seu regresso de Cartoum. Descobri a importância de continuar quando não se vê a luz no fundo do túnel. ( pp. 252-253)

Digamos que Sérgio Vieira e José Moiane são dois extremos de todo um conjunto de textos que foram publicados até hoje em Moçambique relativamente às memórias de cada um dos protagonistas que acharam por bem deixar por escrito o seu papel nessa mesma luta.

A lista é grande e os títulos são bem elucidativos. Hoje insiste-se que muitos outros “camaradas” que ainda não o fizeram possam se juntar a estes que tomaram a dianteira publicando as suas memórias – Hélder Martins: Porquê Sakrani? Memórias dum médico duma guerrilha esquecida (2001), Jacinto Veloso: Memórias em vôo rasante (2007), José Pahhlane Moiane: Memórias de um guerrilheiro (2009), Matias Mboa: Memórias da luta clandestina (2009), Raimundo Pachinuapa: Memórias de uma história incompleta (2009), Joaquim Chissano: Vidas, Lugares e Tempos (2011), Sérgio Vieira: Participei, por isso testemunho ( 2011), Óscar Monteiro: De todos se faz um país (2012), Salésio Teodoro Nalyambipano: Memórias de um general da linha da frente (2013), Lopes Tembe: Da Udenamo à Frelimo e a diplomacia moçambicana (2014),

Em todos esses relatos, importa fundamentalmente estabelecer um esquema estrutural muito semelhante: o nascimento, que do ponto de vista do nascimento dos heróis tem de ser um nascimento especial, isto é, ou um nascimento difícil, ou um nascimento numa família adversa, ou um nascimento que propicia que o indivíduo esteja já predestinado a apreender ensinamentos que fazem dele uma pessoa especial. Note-se por exemplo o nascimento em condições difíceis do menino de Nazaré, mas que já estava predestinado a ser um ser especial, o menino prodigioso do Novo Testamento, que foi concebido de uma forma especial, que nasceu em Belém em condições adversas, cresceu em Nazaré, trabalhando como carpinteiro, que aos 12 anos já discutia as leis com os doutores das sinagogas, que foi condenado à morte na cruz e trouxe a salvação da humanidade.

No caso vertente dos nossos guerrilheiros e políticos da libertação, o facto de todos eles terem nascido nas condições difíceis do colonialismo faz deste facto histórico o contexto que condiciona a natureza do seu nascimento e desenvolvimento como protagonistas da história libertária. Todo o percurso da adolescência, até se juntarem ao movimento de libertação não é mais do que o processo iniciático que faz destes personagens, heróis semelhantes aos de qualquer história da tradição oral mítica, que enfrentaram provações diversas que os levaram a confluir para a mesma causa. Note-se que apesar de não haver nesta fase qualquer manifestação ideológica do processo, pressente-se uma predisposição de que o seu papel será importante para as grandes metas que pretendem para as comunidades ou para a nação: “Independência ou Morte- Venceremos!” para libertar o homem e a terra do opressor.

Memória e esquecimento significa que dificilmente encontraremos nestes textos, as grandes contradições que estes movimentos normalmente enfrentaram e que muitas vezes atravessaram crises até fratricidas, que pura e simplesmente são ignoradas ou justificadas.

Como dizia atrás, a capacidade que o homem tem de contar factos para construir mundos, a organização que acolheu estes nossos autores transformou-se ela própria num espaço mítico. Quando alguém diz “a Frelimo quer ou a Frelimo não quer” não se vai procurar quem é que na Frelimo disse, de tal forma que todos eles desempenharam bem ou mal algumas tarefas importantes na guerrilha e depois na República, mas sempre colocam no seu discurso como sendo o espírito de missão, porque a Frelimo assim quis. Talvez seja por isso que Marcelino dos Santos sente-se na legitimidade de se confundir com o próprio movimento. Ninguém questiona quando ele diz “A Frelimo sou eu!”

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